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A urgência da amizade social em tempos de fragmentação

FOTO: Divulgação

A morte de um Papa ressoa como um trovão suave no espírito da humanidade. O silêncio que se segue à sua partida é, paradoxalmente, cheio de palavras. Palavras de fé, de compaixão, de lucidez moral. No caso de Francisco, esse silêncio está impregnado daquilo que ele mais pregou: a amizade. Não uma amizade qualquer, mas aquela tecida na alma do Evangelho, sustentada por um fio fino e firme chamado fraternidade.

Em sua encíclica Fratelli Tutti — “Todos Irmãos” —, o Papa Francisco nos oferece um verdadeiro tratado contemporâneo de humanidade. Sem jamais deixar de ser pastor, ele se apresenta como filósofo, como profeta, como irmão. Fala à consciência global, numa época marcada por polarizações, desigualdades crescentes e pelo esfriamento afetivo das relações humanas. No turbilhão digital em que vivemos, onde vozes se sobrepõem e verdades se diluem, o Papa ousa lembrar que a amizade ainda pode ser um princípio de ordem, justiça e esperança.

A amizade como prática política

Francisco propõe algo revolucionário: que a amizade social seja a base de uma nova política. Isso não é sentimentalismo. É Evangelho vivido e filosofia encarnada. Inspirado em São Francisco de Assis, ele insiste que nenhuma sociedade pode se sustentar sobre o egoísmo, o rancor ou o medo do outro. A lógica da competição, da dominação e da indiferença nos conduz ao colapso espiritual e civilizacional.

A amizade social é o nome de um projeto: criar laços. Laços entre povos, entre culturas, entre gerações. Laços entre as instituições e os cidadãos. Laços entre a justiça e a misericórdia. Laços entre o ser humano e a criação. É essa amizade que permite a escuta, a empatia, o diálogo e a cooperação — valores cada vez mais escassos, mas absolutamente indispensáveis.

Um princípio evangélico de urgência inadiável

Como mulher de fé evangélica, reconheço em Fratelli Tutti a mais pura centelha do espírito de Cristo. “Amai-vos uns aos outros” não é uma opção ética, é uma convocação. Uma convocação à regeneração das relações humanas, à superação da indiferença e à reconciliação com a nossa própria condição de criaturas interdependentes. Somos, de fato, todos irmãos — e talvez este seja o mais urgente dos resgates no tempo presente.

Francisco não falava apenas à Igreja. Falava aos homens e mulheres de boa vontade, aos gestores públicos, aos líderes comunitários, aos professores, aos juízes, aos artistas, aos jovens. A todos aqueles que, mesmo diante da brutalidade do mundo, ainda acreditam que é possível construir uma cultura do encontro.

Um legado para os corações e para a história

O legado do Papa Francisco não se mede em números, nem em títulos, mas em sementes. Sementes de uma nova espiritualidade social, de um novo humanismo. Ele nos ensinou que a grandeza está no cuidado com os pequenos; que a verdade não pode ser separada do amor; e que só haverá paz duradoura se formos capazes de enxergar no outro um irmão.

A sua voz permanece — não apenas nos livros, mas nas consciências. E cabe a nós, mulheres e homens públicos, cultivarmos este chamado. Fazer da amizade um critério de ação. Fazer da fraternidade um instrumento de justiça. Fazer do cuidado com o próximo uma política de Estado.

Que a memória de Francisco nos inspire a essa travessia. Porque, como ele mesmo escreveu: “ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva”.

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